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A constituição do crédito tributário e a Súmula nº 436 do STJ
Para entendermos a súmula e identificarmos a falha que contém, precisamos recordar o processo de arrecadação de tributos.
Em maio de 2010 o STJ publicou a Súmula 436 com o seguinte enunciado:
"A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco".
Foi infeliz o STJ na redação da súmula e com ela causou confusão no meio tributarista.
Para entendermos a súmula e identificarmos a falha que contém, precisamos recordar o processo de arrecadação de tributos.
Com sabemos, a Constituição Federal consagra como um dos pilares do ordenamento jurídico pátrio, o princípio da Separação dos Poderes: compete ao Poder Legislativo a edição de normas gerais e abstratas e ao Poder Judiciário a salvaguarda dessas normas.
Diferentemente do que ocorre no direito anglo-saxão, o direito romano germânico adotado pelo Brasil não permite que o juiz decida sem respaldo de norma escrita editada pelo Poder Legislativo. Assim, súmulas não podem ser entendidas como inovação do Direito porque os tribunais não têm competência para isso. A súmula apenas representa o resultado da aplicação da norma escrita à determinada situação repetitiva.
Quando um tribunal fundamenta sua decisão numa súmula estará, indiretamente, fundamentando a decisão na Lei - como deve ser -, porque a súmula estará, necessariamente, fundamentada na Lei.
Limitação ao poder de tributar
A Constituição Federal atribui às unidades federativas poder para arrecadar tributos. Mas esse poder é limitado:
CF, Art. 146. Cabe à lei complementar:
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
É sabido que a Administração Pública só pode fazer o que a lei permita. Mas em se tratando de arrecadação tributária a regra é mais restrita: só pode fazer o que lei complementar permita.
O Poder Judiciário, como não poderia deixar de ser, tem zelado pela salvaguarda da Constituição. Um exemplo é o que aconteceu com a Lei Federal nº 8.212/91, que afrontou o disposto no art. 146, III, b, acima transcrito:
Art. 45. O direito da Seguridade Social apurar e constituir seus créditos extingue-se após 10 (dez) anos contados: ...
Art. 46. O direito de cobrar os créditos da Seguridade Social, constituídos na forma do artigo anterior, prescreve em 10 (dez) anos.
O Supremo Tribunal Federal "detonou" essa lei ordinária federal com a Súmula Vinculante Nº 8:
"São inconstitucionais (....) os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário".
Constituição do crédito tributário
O art. 146 da CF reserva o tema "crédito tributário" para lei complementar. O CTN é a única lei complementar (por recepção) que dispõe sobre constituição do crédito tributário:
CTN, Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Já vi autores afirmarem que "o lançamento compete privativamente à autoridade administrativa". Para evitar equívocos como esse, dividamos o art. 142 em períodos mais simples, na ordem direta, para facilitar seu entendimento.
Estabelece o art. 142:
1. A constituição do crédito tributário compete privativamente à autoridade administrativa.
2. O lançamento é o procedimento que constitui o crédito tributário.
3. Lançamento é o procedimento pelo qual se verifica a ocorrência do fato gerador, se calcula o valor do tributo devido, se identifica o sujeito passivo e se aplica a penalidade, se for o caso.
Ou seja: "Quem" constitui o crédito tributário é sempre a autoridade administrativa. "O que" constitui o crédito é sempre o lançamento. O que compete à autoridade administrativa é a constituição do crédito tributário e não necessariamente o lançamento. Não se confunda o "exercício da competência" - a constituição do crédito -, com o "ato correspondente ao exercício da competência", - o lançamento.
O CTN é taxativo e não abre possibilidade para que a constituição do crédito possa ser feita por outro agente ou por outro procedimento.
Da análise do disposto pelo art. 142 conclui-se que se houve arrecadação, alguém quitou uma dívida tributária constituída pela autoridade administrativa, que necessariamente terá sido decorrente de um lançamento. Ou seja, não há arrecadação de tributos sem que antes tenha havido um lançamento.
Tenho notado que nem todos entendem quem seja a "autoridade administrativa" que detém a competência para constituir o crédito tributário. Vejamos.
A Constituição atribui às unidades federativas competência para instituir e arrecadar tributos. Quem age em nome das unidades federativas, representando-as, são os prefeitos, os governadores e o Presidente da República. Quem arrecada tributos, agindo em nome da unidade federativa que administra, são as autoridades citadas. A constituição do crédito tributário é uma etapa da arrecadação de tributo. Assim, a "autoridade administrativa" que detém competência para constituir o crédito tributário são os prefeitos, os governadores e o Presidente da República.
Outro ponto nem sempre sabido são os efeitos jurídicos de ser a competência para constituir o crédito tributário do tipo "privativa".
A Lei nº 9.784/99 estabelece que competência é delegável e avocável. Mas excepciona a competência exclusiva da possibilidade de delegação:
Art. 11. A competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos.
Art. 12. Um órgão administrativo e seu titular poderão, se não houver impedimento legal, delegar parte da sua competência a outros órgãos ou titulares, ainda que estes não lhe sejam hierarquicamente subordinados, (...)
Art. 13. Não podem ser objeto de delegação:(...)
III - as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade.
Então, não sendo a competência para a constituição do crédito tributário do tipo "exclusiva", a autoridade administrativa pode delegar a atividade correspondente ao exercício da sua competência, o lançamento, a quem ela quiser. O delegado, ao lançar o tributo, estará agindo em nome da autoridade administrativa e será essa autoridade que, para todos os efeitos jurídicos, estará constituindo o crédito tributário, exercendo, assim, a competência privativa a ela atribuída pelo art. 142 do CTN.
Constituição definitiva do crédito tributário
Já vimos que é apenas o lançamento que constitui o crédito tributário. É o que acontece, por exemplo, por ocasião da venda de produtos industrializados quando então são constituídos os créditos tributários do IPI e de outros tributos incidentes sobre a receita. Esses créditos decorrem de lançamentos efetuados pelo contribuinte, por força das respectivas leis. Exemplo:
Lei federal 4.502/64 - Imposto do Consumo (Lei do IPI):
Art. 19. O imposto será lançado pelo próprio contribuinte: (...)
II - na nota fiscal:
Art. 20 (...)
Parágrafo único. O lançamento é de exclusiva responsabilidade do contribuinte.
No caso do IPI, a autoridade administrativa, o Presidente da República, na medida em que manda por meio de lei o contribuinte fazer o lançamento, dá-lhe poderes para isso (o mandado em Administração Pública é sempre feito por lei). O contribuinte atua como delegado da autoridade administrativa, agindo em nome dela. Assim, quem faz o lançamento do IPI é o contribuinte, mas quem constitui o crédito tributário é o Presidente da República. Note-se que é sempre o credor que constitui a dívida do devedor, seja ela tributária ou comercial. Não tem sentido "o devedor constituir a própria dívida".
Entretanto, o lançamento sempre constitui o crédito tributário em caráter provisório, não definitivo, pois a mera devolução da mercadoria vendida, no caso do IPI, por exemplo, extingue o crédito tributário constituído por ocasião da emissão da nota fiscal.
O CTN utiliza o conceito de constituição definitiva do crédito tributário para determinar o início do prazo prescricional:
Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.
Sabemos que a prescrição começa no momento em que o crédito pode ser objeto de cobrança judicial. Assim, está implícito no art. 174 que é a constituição definitiva do crédito tributário que possibilita sua cobrança judicial.
Note-se também que a missão do Fisco estará concluída se e somente quando o crédito tributário estiver definitivamente constituído. Isso porque nesse momento "a bola" é passada para o Judiciário, que é quem tem poder para exigir do contribuinte o pagamento do tributo.
A constituição definitiva do crédito, condição necessária e suficiente para sua cobrança executiva, decorre de evento que não precisa estar previsto em lei complementar. Quando o lançamento é feito pelo Fisco, são exemplos de eventos que constituem definitivamente o crédito tributário a não impugnação do lançamento no prazo dado e a decisão irrecorrível em processo administrativo fiscal.
Quando o lançamento é feito pelo contribuinte, o evento que constitui definitivamente o crédito tributário é a confissão de dívida.
Entendendo a Súmula 436 do STJ
Nesse momento voltemos à Súmula STJ 436. Para entendê-la precisamos analisar a "Referência Legislativa" citada na íntegra da súmula, que está disponível no sítio do STJ na Internet.
Recordemos a Súmula 436:
A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco.
Uma das normas que constam da "Referência Legislativa" da súmula é a Lei nº 5.172/66 (CTN), art. 150, que dispõe sobre o "lançamento por homologação".
A citação do Art. 150 é pertinente e necessária, porque o débito fiscal reconhecido, que é o mesmo que dívida tributária, ou, do ponto de vista do Fisco, o mesmo que crédito tributário, terá sido necessariamente constituído por lançamento feito pelo próprio sujeito passivo, ou seja, por lançamento por homologação.
Nesse momento já se identifica uma restrição à aplicação da súmula: os tributos objeto da declaração entregue devem estar sujeitos ao lançamento por homologação, como é o caso do IPI e dos demais tributos objeto da DCTF.
Outra norma que consta da "Referência Legislativa", fundamentando a súmula, é o Decreto-Lei nº 2.124/84:
Art. 5º O Ministro da Fazenda poderá eliminar ou instituir obrigações acessórias relativas a tributos federais administrados pela Secretaria da Receita Federal.
§ 1º O documento que formalizar o cumprimento de obrigação acessória, comunicando a existência de crédito tributário, constituirá confissão de dívida e instrumento hábil e suficiente para a exigência do referido crédito.
§ 2º Não pago no prazo estabelecido pela legislação o crédito, corrigido monetariamente e acrescido da multa de vinte por cento e dos juros de mora devidos, poderá ser imediatamente inscrito em dívida ativa, para efeito de cobrança executiva, observado (...) (grifos meus).
A DCTF, instituída por instrução normativa do Secretário da Receita Federal do Brasil, tem fundamento nessa lei, entre outras. Para detalhes veja: www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/Ins/2010/in11102010.htm.
Note-se que a DCTF é uma confissão de dívida não porque o STJ a tenha entendido como tal, mas porque o DL 2.124 define como confissão de dívida as declarações desse tipo.
Note-se ainda que o decreto-lei estabelece no § 1º que a declaração é "suficiente para a exigência do referido crédito", exigência essa que só pode ser feita pelo Poder Judiciário. No § 2º reforça o dito no parágrafo anterior estabelecendo que o crédito declarado pode ser objeto de cobrança executiva. Logo, a declaração, por força de DL 2.124, possibilita a ação de cobrança executiva do crédito, ou, em outras palavras, nos termos do art. 174 do CTN, a declaração constitui definitivamente o crédito tributário.
Note-se outra restrição à aplicação da súmula que é amparada pelo DL 2124/84: os tributos objeto da declaração, além de serem tributos sujeitos ao lançamento por homologação, devem ser tributos federais. Dessa forma, se os estados e municípios quiserem instituir declarações similares à DCTF deverão promulgar lei similar ao DL 2.124.
Ao contrário do muitos pensam o STJ não inovou o direito tributário. Não tem poderes para isso. A súmula decorre da simples e mera aplicação pelo STJ das leis nela citadas, que é o que pode e deve fazer o Poder Judiciário.
O relator Ministro Mauro Campbell Marques foi preciso ao dizer:
"A jurisprudência desta Corte já pacificou entendimento no sentido de que, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, a entrega da DCTF ou documento equivalente constitui definitivamente o crédito tributário, dispensando outras providências por parte do Fisco". (Processo AgRg no Ag 1196004 / MG 2009/0108141-2)
Em outras palavras, diz o Ministro que se o tributo é sujeito ao lançamento por homologação, ato que constitui o crédito tributário, então a entrega da DCTF ou documento equivalente constitui definitivamente o crédito tributário.
O enxugamento de textos como o do Ministro produziu a Súmula 436:
"A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco".
Infelizmente o enxugador do texto não conhecia a diferença jurídica entre "constituição do crédito" e "constituição definitiva do crédito". Talvez achando que o termo "definitivamente" estivesse sendo usado apenas por questão de ênfase, retirou-o. Com isso distorceu a mensagem e causou a confusão no meio tributarista que este trabalho procura desfazer.
Conclusão
Em resumo, no Brasil, por força do art. 146, III, b da Constituição Federal e do art. 142 do CTN, quem constitui o crédito tributário é sempre a autoridade administrativa e o que o constitui o crédito tributário é sempre o lançamento. Não existe outra maneira de se arrecadar tributos. Súmula de tribunal não pode mudar essa situação porque o Poder Judiciário não tem competência para inovar o Direito.